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segunda-feira, 16 de novembro de 2009



O Quarto

Ficava em Arles, no sul da França, cidade com maior área territorial do país e rodeada por uma paisagem campestre digna de ser reproduzida em inúmeras obras de arte. Fazia parte daquela exuberância amarelada coberta, ainda que por dentro, de girassóis. Seu sonhador artífice considerava o amarelo o mais simbólico dentre todos pigmentos que lhe serviam.

Porém, talvez um tanto contraditoriamente, não exprimia o amarelo com tanta vivacidade como na Casa ou no Café. Não que este não estivesse presente, pois o dito cujo teimava em aparecer, mesmo que tão discretamente quanto naquela Noite Estrelada, sobre o rio. Mas o que o dominava mesmo era o turquesa. Certamente clareado, talvez puxado para o celeste, na intenção de dar-lhe a tão sonhada sensação de tranquilidade nunca alcançada.

À direita, na mesma parede em que se abria a saída do quarto, o leito desarrumado como se tivessem acabado de levantar-se dali. A perspectiva trazia ao móvel uma grandeza efêmera, que a qualquer momento poderia ser deposta; bastavam alguns passos. Atrás dela, no cabideiro, vestes e um chapéu. Rodeando a cama, a metalinguagem: paisagens, Theo, e uma das inúmeras tentativas de auto conhecimento produzidas pelo tal artífice: um auto-retrato.

A parede da cabeceira era a da frente, na qual ficava a janela. Impossível de ser fechada, abria-se para dentro com os ventos, maldios ventos que encaminhavam ao enlouquecimento. Havia, ainda de frente, o criado-mudo – movel simples, com apenas uma gaveta, onde descansavam alguns apetrechos de higiene pessoal e uma cadeira – de madeira clara,ornando com a cama, assento de palha esverdeada e sem braços – virada para a cama como se assistisse o inexistente sono tranquilo e descansado. Na próxima parede, seguindo em sentido anti-horário, havia outra cadeira, em par com a já acima descrita, e a entrada para o banheiro, em cujo batente dependurava-se a toalha de banho. A última parede não se pode saber o que continha; supõe-se um guarda-roupas, ou os utensílios do ofício.

Todos os móveis deitavam-se sobre o assoalho, cuja grosseria era expressa através da textura carregada de pinceladas rígidas de um marrom escurecido e sóbrio, ainda não influenciadas por Paul. Somente em sua próxima versão, esta para Theo, é que seria levemente revelada a presença do companheiro na casa.

Paul viria em outubro, cheio da tropicalidade do Panamá, suas inéditas cores fortes e formas tão bem delineadas. O artífice sonhador achava que então realizaria o sonho, mas o amigo parecia não compartilhá-lo. Eram tão diferentes quanto aquela cadeira próxima ao leito e uma bela poltrona, num outro canto da Casa. A primeira era a já dantes descrita – aquela que instalara-se próxima ao acesso do banheiro - era simples, grosseira e muito amarelada. Habitavam-na apenas cachimbo e fumo. A poltrona de Paul era elegante, fina, de corte diferenciado. Carregando livros e uma vela acesa, comportava-se como uma esposa que aguarda a volta do marido que deixou-a.

A convivência dos dois divergentes temperamentos durou nove semanas, culminando na partida Paul,e num novo auto-retrato do artífice, agora com a cabeça ligeiramente inclinada a fim de mostrar-lhe a face esquerda do rosto, ornamentada com um novo acessório que lhe seria o passaporte para uma nova vida. Nova vida, um novo cômodo, tão desigual do acima descrito, mas que acabou por eternizá-lo.


2 comentários:

Unknown disse...

Nossa gata, achei que eu tava lendo Machado de Assis.

Eu digo que você é artista e você não acredita em mim... ¬¬'

canbeck disse...

muito-bom.